23/03/2007

Teu pedaço

eis a lua que chega
cheia
espreita
espreito
espreitamo-nos
de caneta em punho
todo o teu corpo latejando
promessas do teu pénis molhado
na minha língua
pela minha boca redonda
ávida
côncava
rubra

teu convexo pedaço
meu nesse minuto
em que te chupo despudorada
desfaz-se...

pois enquanto lambo

mordo o coração

abro a boca

espero pelas gotas nos meus seios silvestres
molhando a rosa pousada



Manuela Alves. Meu gabinete, Ponta Delgada, 1998

Tempo

ai estes ossos
que peço
desapareçam
sob algumas lufadas de carne

entretanto

não como
não bebo
não durmo
há horas sem fim
quando percebi
amar teu corpo
com um relâmpago
que me escapava



Judite. Num cinema em Ponta Delgada.

19/03/2007

No início

Decorria o inicio da criação.
Apaixonados, Céu e Terra queriam fundir-se num só.
Então o Céu pediu à Terra:

- Estende-te e estender-me-ei depois sobre ti.

Desde então, Terra e Céu estão unidos num só corpo suado ...

... diz-se que entre os dois nasce permanentemente uma água cristalina que, cada vez mais, os envolve e os completa.

Assim nasceu a vida, num eterno coito revolucionário.

Mike Kawak. Fajã Grande, Flores 2005

Mãe tenho ciúmes do pai ...

se te imagino assim, a toda hora
brusquinha que aparece… é porque
me encanto de ti
assim… Nu…

marítimo
Inesperado…

assim … meu… querido narcótico Atlântico.

Ariel (prometo não fumar mais ganzas)

Onde o mar vomita

Aí onde o mar vomita um silêncio longínquo
Que se infiltra em todos os meus poros
Todos os dias.

Um silêncio de palavras cáusticas,
De gritos desesperados,
De uma alegria ansiada.

Aí onde o céu, o mar, a terra e as gentes
Pintam uma orgia inevitável, que me seduz e inquieta.

E onde me apercebo que toda vida que aí existe, existiu ou existirá
Tem um segredo ensurdecedor devorado por um mar sôfrego de palavras.

Catarina Fernandes, Barcelona 2007

Voo do Cagarro.

Recostado na borda cortava isca com a faca que sempre trago comigo, afiada como nenhuma, cortar com ela é um dos poucos prazeres a bordo da lancha do meu pai. Gosto deste lugar a meia nau, aqui pouco incomodo o meu pai na popa e o joaquim na proa, ambos com o arame arreado tacteando o fundo com uma precisão de quem tem as mãos na ponta dos anzóis... esta posição custou-me alguns anos a precisá-la, com o pé direito na antepara e o esquerdo travado na caverna, conseguem aliviar o peso no meu cu assente na serreta de fundo; raramente me lembro do cheiro a podre deste sítio, antes pelo contrário, esta posição por vezes me excita, pois faz-me lembrar-te de pernas abertas, envergonhada olhando-me com os olhos brilhando ... nunca sei se o fazes para me agradar ou porque adoras que eu te passe com a ponta da lingua na barriga das pernas ... eu adoro chupar-te ... Mas tu nunca me disseste se gostas mesmo ou se não ... aliás nunca falamos destes poucos momentos.
Há dias que quase rebento de perguntas a fazer-te, mas nunca te perguntei nenhuma, nunca sei como fazê-lo e tu? Adorava falar contigo destas coisas, acho que se falarmos seria melhor ... ou não, se calhar estragava o mistério, mas duvido que assim fosse, pois eu só de escrever neste pequeno intervalo entre cherne e isca estou corando e sinto um estranho alívio só de escrever, se te falasse tudo o que sinto quando estou contigo de certeza que me conhecias melhor e eu a ti.
Minha querida sei que tens só 16 anos mas assim que fizeres 17, estou decidido em contar ao teu pai que estou apaixonado por ti, lembras-te daquela aula em que a professora Laura nos falou da importância de escolhermos em liberdade a nossa sexualidade? Não sei se percebi tudo quanto ela nos disse mas acho que agora sei ... sinto-me livre e só invejo os cagarros voando em círculos ... tenho a certeza que tu és a mulher que eu sonho que me dá gana de apertar sem fim, espero que entendas quando digo apertar, não é te magoar, mas abraçar-te forte no meu peito. Eu hoje sei porque que é que tu não queres ir mais à escola ... mas acho que não tens mais nada a provar à tua mãe, se o meu pai me perdoar vou voltar à escola e se a professora Laura ainda lá estiver direi que tem toda a razão e o quanto pensei no que me disse.
O meu pai já me chama à atenção por estar a escrever, “paneleirices” diz ele, eu acabo sempre por ter um pouco de pena dele ... acho que perdeu alguns anos da sua vida lutando contra a sensibilidade, a mesma que sinto pois somos muito parecidos, mas comigo será diferente, gostava de partilhar com a minha companheira o que sinto por dentro e te direi um dia o que agora me apetece mandar ao mar ...
A minha mãe está sempre doente e penso que parte da sua doença é da indiferença com que eles se tratam, penso muitas vezes porque é que só me tiveram a mim, terão feito amor assim tão poucas vezes. É incrível como é que nunca vi o meu pai dar um beijo a ninguém, mentira já vi dar beijos á minha cadela, tá bem que o cão é fixe mas porra!! Ele só deve fazer amor com os chernes quando tacteia o fundo e os engana.

Tenho que cortar mais isca ...

Já estou todo fodido ... os chernes não há meio de picar e estes caralhos não param de implicar com a minha escrita, “só foste para a escola para aprender fumar droga e escreveres paneleirices”, reafirma ele constantemente, já não o posso ouvir ...

Bingo!... tudo muda na cabeça dos pescadores quando enganam o peixe, estamos a ir para terra e a pescaria rendeu 16 chernes e 4 gorazes, o dia está bem ganho, disse ao meu pai que escrevia a deus para nos ajudar, o artolas acreditou e disse-me que ia me oferecer um bloco novo em folha e uma caneta de doutor, só para evocar deus e os chernes ... Para um pescador tudo mas tudo mesmo é possível desde que faça pescar mais, nos próximos anos terá mais uma história para atarraçar a cabeça a outros tantos, e desta vez terá a reza do seu filho como assunto, dirá: ... era ele a rezar e eu a sacar ...
Coitado mal ele sabe do que escrevo, para mim fica hoje assente que se falar a verdade sobre o que penso tudo corre melhor, tudo faz mais sentido, é lógico que se pesque melhor.


Hoje é tarde e não sei porquê, mas ainda tenho este estúpido papel comigo, pior ainda! fui amostrá-lo a um amigo meu que é louco por lanchas de pesca, ele é meio esquisito mas é bom homem e convenceu-me a mostrar este texto numa revista que diz que vai sair não sei quando, ele diz que o que escrevi é muito importante e bonito, e que pode ajudar as pessoas a se libertar. Não acredito nisso mas gostava que as minhas ideias saíssem em letras de máquina e em papel de jornal como ele me prometeu ... apaguei então o teu nome e o meu para que ninguém saiba quem fala ou para quem é. Só tu meu amor o saberás, pois quando sair eu já to disse ...

Anónimo, S. Miguel 2006

S/titulo

18/03/2007

Bolina

quando
era menina
amava os marinheiros franceses
no cais
deitada
com imaginação de liberdade
nos braços


quando
frescos semeavam
eu
ilha
petrificada na névoa
procurava
arrastando o corpo pela terra
luz que me atravessasse


assim
quando
hoje
qual réptil
chego às pedras inclinadas
e lá enfio os dedos rasgados
pelo mar que me entope dentro
onde
entupida em sal
me conservo
branca
inconformada
perplexa
comigo mesma


quando não rebento em rosas


falta-me a expansão dos espaços sem rosto
falta-me esse segundo de silêncio
falta-me a cidade perpétua sem olhos
falta-me teus olhos de areia iluminados
falta-me o grito da minha vulva nos corpos dos anjos
falta-me...


... essa harmonia


Manuela Alves. Marina de Ponta Delgada, 2006